MÃOS DE PIANISTA

Era uma vez uma menina feita de amor. Os braços de amor, as pernas grossas de amor, os pés iguais aos do pai, de amor, o cabelo negro e fino de amor, as mãos “de pianista”, como dizia sua mãe, de amor, os olhos castanhos curiosos de amor, a pele clara de amor, a boca que sorria alto de amor. Ela vivia assim, de amor. E por isso já havia se doído toda. Se doava, se ria, se abraçava, se fazia, se andava, se dormia, se acordava, se respirava, se beijava, se comia de amor. E porque ela já havia se machucado tanto, pensava que deveria ser igual aos outros: metade amor, metade quase. “Não se vive só de amor”. Quanta contradição numa só frase. E isso resumia. Era a gramática gerativa da sua existência. Não se vive. Só de amor. Não, só de amor se vive. Tudo uma questão de pontuação, de colocar o verbo depois do substantivo. Se faz sentir, faz sentido. E era assim que fazia a leitura dos lábios dele, do seu rosto, com a barba agora bem aparada e que a espetava algumas vezes que o via, como o espinho fino que entrava no seu coração a cada despedida. Mais um espinhozinho. E lia tudo o que ele havia escrito nas noites anteriores... Vazio ela sabia que existia. Ela queria ser a fuinha da piada interna dos dois. Daria tudo pra ter nascido uma fuinha, um esquilo, uma árvore, o cachorro bem cuidado do vizinho, só pra não viver assim, de amor.

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